Sertão é por os campos gerais a fora e a dentro,
eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia...
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador...


Sertão é o sozinho(...)Sertão: é dentro da gente.



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Novo Visual

A conversa no píer rendeu quase toda a manhã. Devia ser mais de onze horas quando saímos da represa e fomos ao salão onde sua mãe oferecia um curso de corte de cabelos para aprendizes.

Havia umas vinte pessoas na sala, todas mulheres; a maioria interessada em ganhar um corte grátis do professor que viera de São Gonçalo –RJ – para atualizá-las. Alegre e calma, ela nos recebeu dizendo que o curso estava sendo um sucesso: havia mais gente do que o esperado; portanto era melhor que voltássemos durante a tarde: André iria cortar o cabelo; e eu, talvez, se sobrasse tempo.

Como sua mãe, André tinha o cabelo preto brilhante e liso. Era um rapaz muito bonito: moreno claro, de rosto pequeno e levemente anguloso, traços delicados e um sorriso cativante. – Certamente mais parecido com a mãe: Seu Geraldo é bem claro, tem o rosto retangular e um nariz carnudo. – Se André não tivesse me contado da história com a droga, jamais a suporia: o jeito vivaz, alegre; sua aparência saudável não correspondiam em absoluto com a imagem que temos de um usuário – ou, como no seu caso, ex-usuário.

Resolvido que devíamos voltar mais tarde, fomos para sua casa almoçar. O cardápio era o mesmo do jantar com exceção do bife e do ovo frito. Seu Geraldo perguntou se aceitava uma “cachacinha” para abrir o apetite; agradeci mas recusei – creio eu que para sua felicidade, pois a todo tempo me usava de exemplo, indiretamente, para incentivar o filho (e agora eu entendia o porquê).

Terminado o almoço voltamos para o curso de cabeleiro. – Detalhe: não sem antes ter de afirmar com veemência que estava completamente satisfeita, do contrário, deveria comer toda a comida da casa; pois, como já pude constatar, nada apraz mais um mineiro do que ver sua visita raspar até o fundo as panelas.

André, que fatalmente seria cobaia, ficou a espera de sua vez; eu iria comprar algumas coisas no supermercado e retornaria em seguida.

Quando voltei, André já não estava, tinha sido chamado rápido; a mãe pediu para que eu esperasse pois certamente conseguiria uma vaga para mim. Não demorou e logo estava sentada no meio do salão, sendo assistida pelas alunas que acompanhariam a técnica de um “corte moderno”.(Fui apresentada – obviamente – como a corajosa maluca que viajava sozinha de bicicleta – e que, pela natureza aventureira, não deveria fazer objeções quanto a ganhar um corte de cabelo radical: – “Ou faria?” – Claro que não! – Que viesse o novo visual!).

O professor começou os procedimentos, cuidando para explicar cada passo de suas tesouradas. Embora cansado, ainda arranjava espaço durante a aula para perguntar sobre meu endereço no Rio de Janeiro, falar também de suas viagens pelo Brasil e fazer propaganda de seu salão. Só sei que, ao final do corte, saí da sala dividindo aplausos com ele; e, na cabeça, com um visual nem de longe moderno: o mesmo chanel indefectível – padrão de quem tem cabelo liso escorrido e não usa produto para dar-lhe formas.

Novamente na casa de meus anfitriões, Seu Geraldo diz que irá me apresentar ao pessoal da polícia florestal para obter melhores informações sobre o caminho até Pirapora. Dois dos guardas disponíveis nos receberam na sede da polícia – na verdade na pracinha em frente – e confirmaram que havia caminhos pelas fazendas até a cidade, mas que não seria uma jornada fácil. Explicaram que o melhor era ir até Barra do Rio de Janeiro e procurar o “Nem da Barra”, pescador local: se ele não arranjasse ninguém para me levar de barco toda a distância – talvez ele mesmo o fizesse – saberia me indicar o caminho por terra. – Até Barra do Rio de Janeiro tinha estrada marcada no mapa.

Era normal, nas conversas sobre trajetos, o informante, ao explicar o caminho, prevenir-nos das dificuldades e perigos. No caso da descida para Pirapora – ou Buritizeiro, que dista a largura do São Francisco da outra cidade –, o problema era o próprio núcleo urbano. Segundo eles, aquelas eram cidades infestadas de assaltantes e bandidos de toda espécie. – “Deveria tomar muito cuidado” –. No trecho rural o maior perigo era me perder nas plantações de eucalipto; caso eu tomasse o rumo de Pirapora: pois, neste caso, era provável que caísse na estrada para Lassance, que aumentaria sobremaneira o percurso.

Dados recolhidos, telefone do Nem em mãos, voltamos. Pedi para Seu Geraldo me deixar próximo a lan house: noticiaria aos amigos a decisão de pernoitar mais duas noites em Três Marias, com o fim de visitar Andrequicé no dia seguinte. Ao sair, telefonei para o tal pescador do “De Janeiro”: desejava saber se era possível que me levasse de barco até Pirapora.

Sem entender o que se passava, Nem explicou que não poderia fazer a viagem pois estava com a casa cheia de pescadores. – Além disso, Pirapora distava uns 70km rio abaixo de Barra do Rio de Janeiro.



Um pouco frustada com a informação, decidi que, de qualquer modo iria até este lugar, e lá descobriria um modo de continuar: do contrário, voltaria a Três Marias e tomaria um ônibus. Naquele momento comecei a dar conta de que a viagem iria se complicar. O fato de não haver estradas de rodagem – ou mesmo rurais –próximas do São Francisco, indicadas no mapa, apontava para o declínio demográfico que me aguardava no norte de Minas – com início ali – e a pouca ou nenhuma relevância econômica da região. Senti que o Grande Sertão começava a partir de Três Marias. Até aquele momento, a viagem fora cicloturismo, agora tornar-se-ia desafio.

Após a janta, na sala, vendo tv na companhia de Seu Geraldo (André tinha ido para o trabalho: era vigia noturno de uma unidade municipal – que não sei ao certo – : trabalhava dia sim dia não cumprindo turnos de doze horas) , vem a infalível pergunta sobre a razão da viagem.

Seu Geraldo, que estava deitado no sofá ao lado, falando amenidades; se vira, toma postura, demonstrando que o tom da conversa mudaria, e me indaga: “– Mas afinal – diga a verdade – o que você está fazendo aqui? (pausa) Qual o verdadeiro motivo desta viagem?” – Não encontrava, absolutamente, uma explicação sobre o que poderia levar uma jovem a sair pelo sertão de bicicleta sozinha: – “E seus pais, onde estão; o que acham disso? Eles não se importam?” – Foi então que tive de lhe contar a história do começo:

- Tenho 28 anos, Seu Geraldo; meus pais são falecidos. Moro no Rio de Janeiro, na casa de uma amiga; pedi demissão do trabalho porque estava infeliz com minha vida; sempre gostei de Minas Gerais; li Grande Sertão: Veredas, me encantei pela história e decidi vir até aqui para conhecer o cenário descrito na literatura. Viajo de bicicleta por prazer... bla bla bla...

Era difícil explicar meus motivos. As pessoas queriam coisas concretas: uma promessa, uma pesquisa, um trabalho. A aventura pela aventura era pouco para elas. O vazio existencial (o real motivo) era uma razão por demais metafísica: – Por que resolver questões de ordem emocional dessa forma?; creio que era isso que elas se perguntavam.

Não sei se Seu Geraldo me compreendeu ou se fez que o tinha; de qualquer forma pareceu satisfeito com as explicações e confessou que seu amigo, o compadre Zé, estivera preocupadíssimo comigo. Achava uma loucura, “Geraldinho” – como é conhecido na cidade -, colocar dentro de casa uma desconhecida: - “E se ela tem uma arma?! Mata ocês tudo! Vocês não sabem de onde ela vem!” –. Era estranho descobrir que podia causar medo. Pensava que a vulnerável na história fosse eu.

Sentindo-se mais íntimo agora, Seu Geraldo confidenciou que o compadre era muito medroso.

Naquela noite dormiria na cama de André – ele mesmo decidira. Chegaria por volta das sete da manhã – “e não tinha problema se quisesse dormir mais” –, o horário que pretendia levantar para aprontar a bicicleta para ir a Andrequicé.

Um comentário:

  1. ...a leitura da sua viagem està me apaixonando, verdade!!
    ...o que significa "nonada" ??

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