Sertão é por os campos gerais a fora e a dentro,
eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia...
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador...


Sertão é o sozinho(...)Sertão: é dentro da gente.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sonho


Vozes, som de passos, respiração ofegante, saltos; o dia começava com Jimmy, o Golden Retrivier, recebendo André.

Eram quase sete da manhã. Encontro André na sala com o cachorro ao lado. Diz que eu deveria dormir mais porque era muito cedo. Respondo que fora o suficiente – também era melhor me adiantar para não pegar o sol a pino no caminho.

Até Andrequicé eram 31km de uma estrada asfaltada e praticamente toda plana – exceto para sair de Três Marias que havia um ligeiro aclive. Fora tão monótono o percurso até lá que quase dormi pedalando.



Cheguei em Andrequicé pouco depois de nove. Sem os alforges, gastei aproximadamente uma hora e meia no trajeto.

Típica vila rural, Andrequicé possui uma capela e algumas dezenas de casas distribuídas num traçado de no máximo dez ruas. Creio que sua população não passe de quinhentos habitantes. Seu maior atrativo é o museu Manuelzão, instalado entre 2001 e 2003 em memória do mais famoso vaqueiro das histórias de Guimarães Rosa. Meu objetivo ali era exatamente a visita ao espaço de cultura.



Enquanto esperava o museu abrir, fazia algumas fotos em torno. Na praça, em frente a capela, dois garotinhos – um menino e uma menina – me observavam curiosos (é normal, em pequenos povoados, o viajante ser imediatamente identificado como estranho. Isto pela razão óbvia de não haver desconhecidos nestes agrupamentos, onde também as condições de vida costumam ser bastante homogêneas: logo minha roupa, a bicicleta e tudo aquilo que eu representava destoava do ambiente e se destacava). Resolvi puxar conversa com as crianças. Estavam admirados com o modelo da bicicleta, achavam-na grande demais. Sem cerimônia, o garoto perguntou se eu o levaria para dar uma volta. Respondi que sim: – E você também, se quiser; disse, oferecendo à menina. Tímida, ela recusou com um sorrisinho desconfiado; o garoto, em um movimento, deixou a mochila com ela e pulou para o bagageiro da bike, ansioso pelo passeio. Dei uma volta de quarteirão com ele: descemos a rua da praça, viramos a esquerda, subimos a rua paralela e retornamos. Tudo diante dos olhos espichados dos vizinhos que deixavam o moleque orgulhoso de sua peripécia.



De volta a praça, deixei o garoto são e salvo com sua amiga e me diriji para o museu. Mais alguns minutinhos até que pudesse entrar: a responsável estava terminando de passar cera vermelha no chão.

O Museu Manuelzão existe na mesma casa onde morou por vinte anos o vaqueiro. É uma casa simples, de estilo rural (chão de cimento queimado e fogão de lenha na cozinha), quintal com pomar nos fundos; exibe fotografias, objetos pessoais, sua mobília original, apetrechos de trabalho, poesias de sua autoria, recortes de jornal e relatos de Guimarães Rosa a contar dos dias junto a comitiva onde conheceu Manuelzão. Como anexos, o museu ainda tem uma sala de estudos, com computador, pequeno acervo de livros e filmes; e a loja onde é vendido artesanato local.

Não consigo descrever a emoção que senti ao entrar na casa. Até poucos dias atrás, Manuelzão era para mim somente uma personagem da obra de Guimarães Rosa; um ser fictício, uma fábula. Foi tal o choque ao ver a realidade daquele homem e de sua história que meu corpo arrepiara inteiro; foi como adentrar um mundo mágico: não sabia mais distinguir sonho de realidade: – Seria possível que tudo fosse verdade: o Grande Sertão, Riobaldo, Diadorim, o Urucuia...? Se Manuelzão existia, por que não todo o resto?! – Não acreditava no que via, era fantástico como encontrar a arca do tesouro.

As fotos da comitiva da qual participou Guimarães Rosa como “vaqueiro amador”, segundo ele próprio; a levar gado de Silga para Araçaí, em doze dias de viagem; estava tudo lá documentado. A palavra inúmeras vezes repetida em Grande Sertão, TOLEIMA, sendo vista nas poesias de Manuelzão. Era verdade: aquele mundo existia!... E era exatamente onde eu desejava estar: – Talvez Riobaldo fosse o irmão perdido de Guimarães Rosa e Manuelzão que me levara aquele santuário. Nunca esta personagem estivera tão viva: Riobaldo era corpo, físico, naquele momento.



Terminei a visita extasiada, confusa de poesia, sem saber se eu era real – sem saber o que era real –. Depois conheci a filha mais velha de Manuelzão, D. Maria, e o neto, Douglas: príncipes do meu mergulho no sertão.

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