O Paredão existe lá.
Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias.
Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbôlo rasgado dos morcegos. Bicho
que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas
paredes. Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com
lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras.
Eu ia para
o Paredão. Rômulo informou que seriam 94km até lá, sendo apenas vinte pelo
asfalto. Apesar das observações sobre as onças - “elas costumam seguir a presa
por horas e até dias se estiverem com fome, esperando o momento do descuido ou
do descanso para o ataque” -, aconselhou que eu tomasse cuidado com as cobras, bastante comum na região. E me ensinou uma oração para
afastá-las:
“Valha-me, Deus, São Bento.
Buraco velho tem cobra dentro.”
Deveria
pedir para o santo protetor que as tirasse do meu caminho. E seria ideal também
carregar alguns dentes de alho, pois "o alho também afugenta os
bichos peçonhentos".
Eram sete
da manhã quando deixei a pousada, depois de tomar um farto café da manhã e anotar
as recomendações.
Elas realmente podem ser encontradas na estrada. Nas duas viagens a Paredão encontrei esta espécie de cobrinha branca. Na última viagem (02/2013), infelizmente, atropelei uma delas.
Sem dúvida,
o caminho para o Paredão fora o mais árduo de toda a viagem, demorei nove horas
para cumprir o trajeto – 10km/h. Neste trecho, pedalei sobre todos os tipos de
pisos possíveis: com pedras, cascalho fino, cascalho grosso, costelinha e areia - muita areia!. Cheguei no povoado com fome e um tanto cansada. A certa altura,
concluí que deveria racionar água, pois a garrafa já estava pela metade e ainda
faltavam 50km para percorrer. Porém, como se fosse providência divina, alguns
minutos depois da constatação, dois pescadores que voltavam de carro do
Paracatu, me forneceram mais um litro de água.
Paredão é o
lugar onde ocorre a batalha final de Grande
Sertão: Veredas, onde Diadorim enfrenta cara a cara o caçado inimigo
Hermógenes. É um povoado relativamente isolado, pois está a 90km de
Buritizeiro, de onde é distrito; 60km de Santa Fé (necessitando atravessar o Rio
Paracatu), e aproximadamente 50km de outros povoados nas margens do Paracatu e
do outro lado do Rio do Sono. Atualmente, o transporte até a cidade é
facilitado por um ônibus da prefeitura que faz a linha até quatro vezes na
semana, e por carros e motos de alguns moradores; entretanto, a estrada
principal de acesso a Paredão ainda é ruim, repleta de atoleiros (seja na areia
seca ou molhada) e buracos; exceto um pequeno trecho de não mais que oito
kilômetros possui uma boa cobertura para a rodagem, um cascalho fino chamado de
toá, ou curiacanga.
A viagem estava difícil, ninguém não passava
ali para eu perguntar se estava na direção certa, e não havia nenhuma casa; os
sessenta kilômetros de estrada vicinal eram muito ermos: apareceram somente
dois carros, duas motos e um caminhão num período de aproximadamente seis horas
– mas, felizmente, não era um deserto absoluto. A tensão por estar sozinha em
um lugar desconhecido, tão vazio e habitado por onças e cobras, se acentuava
pelo silêncio e o sol impiedoso.
Para vencer
o medo, não tinha nada a fazer exceto repetir a oração a São Bento, respirar e
seguir. Para vencer o sol, protetor solar, mas muito protetor solar (spray),
tanto que caiu nos olhos e isto acabou sendo o único problema real de toda a
viagem. Pelo menos sete kilômetros, pedalei quase sem conseguir enxergar,
chorando. A situação me irritou, e eu gritava, pedalava com raiva, xingava a
mim mesma: Vai, sua idiota; não foi você quem inventou essa viagem? Agora
aguenta! Pedala, sua besta!...
Eram quatro
da tarde quando cheguei em Paredão. Na entrada do povoado, um mata-burro e um
campo de futebol ao lado. Aquele parecia um lugar esquecido no tempo, um elo
perdido da história. Estava feliz de ter encontrado o cenário do desfecho de
Grande Sertão:Veredas.
A viagem para Paredão é como um mergulho no tempo. Cheguei pelo outro lado, vindo de Brasilândia depois de atravessar o Porto dos Cavalos no rio Paracatu. Na volta que passei por essa estrada até Buritizeiro. Fui contando as veredas e as arararas no caminho. Foi o final da minha viagem.
ResponderExcluirUm detalhe Ana, o chão de curiacanga, ou canga, é vermelho, de minério fino batido. O que eles chamam de toá é de barro amarelo compacto, também bom pra pedalar. Beijos
Makely, quantos kms de Brasilândia até Paredão?
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAna, o odômetro marcou 97. Foram 66 de asfalto e o restante de terra. Trecho bom de pedalar!
ResponderExcluirÉ, Paredão é "nonada" mesmo.
ResponderExcluirLugarzinho legal, porém difícil demais de chegar. De bicicleta então deve ser um esforço sobre-humano. Primeiro pela areia fofa. Segundo pelo calor absurdo. Parabéns, uma aventura pra bem poucos.
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