Sertão é por os campos gerais a fora e a dentro,
eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia...
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador...


Sertão é o sozinho(...)Sertão: é dentro da gente.



segunda-feira, 26 de março de 2012

A chegada na Barra do de-Janeiro


Os últimos kilômetros até o de-Janeiro foram, basicamente, uma reta em declive; a poeira que subia e o vale do São Francisco derramado por todos os lados: o Baixio da “Sirga”. O cerrado cada vez mais largo, o céu plano e duramente ensolarado. A paisagem sertaneja.

Não sei descrever a monumental imagem daquela região, onde, para mim, começava o verdadeiro sertão; fico nos sentimentos. É velho, o sertão é um ambiente velho, velho e grande; chama o olhar para o horizonte passado. Suas cores são roucas, voz decididamente grave. Sua pele, couro tocado pelo vento. A gente olha para o infinito, encontra uma natureza inabalável, paciente, certa de sua eternidade. Natureza só, que acontece, contudo, sem resguardo: a chuva você vê desde a nuvem, o sol em sua casa, a vegetação estática. O cerrado, em sua totalidade, é alegre resistência em silêncio.

Logo o vasto universo do Baixio virou uma porteira após um mata-burro – assim que terminei de descer o chapadão. Poucos metros dali, via-se a casa velha da fazenda Cambaúba.



Passei a porteira, presa com colchete, e segui em direção a casa. Encostei a bicicleta no pé de uma grande mangueira e chamei na porta. Uma senhora morena e magra me atendeu. Confirmou que ali era a Barra. – Não sei o que esperava exatamente, talvez ver o rio, mas, enfim, chegara ao meu destino.



A senhora, Dona Vera, me convidou para entrar. Ficamos na sala alguns minutos, eu ela e o bebê, seu neto de pouco mais de um ano. Conversando, contei-lhe da viagem e ela me falou de atores e jornalistas que haviam passado por lá, todos interessados no Grande Sertão: Veredas.

A fazenda de gado não lhe pertencia, ela e seu filho, Delvair, eram apenas os caseiros. A criança era de uma filha que morava em Três Marias. A casa, embora com aparência e dimensão de sede, era bastante rústica por dentro: não havia forro no telhado, as paredes estavam carcomidas por traças e rachaduras; o chão, de cimento-queimado vermelho; o fogão de lenha, que ainda queimava quando cheguei. Dona Vera se desculpava pela simplicidade do lugar, Delvair cosia rede no terreiro, sentado em um banco de madeira embaixo de outra mangueira.



Explicaram-me o caminho para o racho do Nem. Até aquele momento não tinha entendido direito a geografia da Barra. Dona Vera mostrou uma estradinha no meio do pasto – assim que terminava a cerca do terreiro –, disse que o rancho distava aproximadamente uns quinhentos metros dali. Explicou-me que o Nem morava do outro lado do rio; que deveria chamar um canoeiro para me atravessar. Não entendi como faria isso: chamar um canoeiro? Como eu faria contato se eles estavam do outro lado? Além disso, não via o rio, sabia, por noção espacial, que o São Francisco estava do lado esquerdo da casa, mas e o de-Janeiro?

Sem mais pensar, segui pela trilha do pasto. A área de capim era barrada por mata ciliar do lado esquerdo e a frente. Como caminhava no sentido do São Francisco, do meu lado direito havia mata, ouvi barulho de água e percebi então que havia um outro rio ali. Na dúvida, deixei a bicicleta no pasto e desci um pouco pelo mato para me certificar de que era mesmo água. Não podia ser o São Francisco visto que era estreito, mas como também não sabia se o velho Chico fazia curva naquele trecho ou se havia alguma ilha fluvial barrando parte de suas águas (o Rio Pardo, em minha cidade natal, tem várias ilhas) não tive certeza de que era mesmo o de-Janeiro.



Voltei e continuei na trilha, até que ela acabou e eu já não sabia para onde rumar. Olhava para os lados e não havia nenhum sinal de habitação, exceto a casa da Cambaúba e outras distantes uns três kilômetros no sentido sul. Decidi seguir pelo pasto em direção a essas casas. Caminhei, empurrando a bicicleta ainda uns duzentos metros, quando parei e reconheci que estava perdida. Resolvi voltar para colher melhores informações com Dona Vera.

Eram quase duas horas da tarde, o sol castigava, minhas pernas estavam feridas pelas picadas dos mosquitos e pelo capim cortante do pasto. O cansaço, a dor e a fome começavam a agir. Deixei a bicicleta e voltei. Confusa, caminhei alguns metros e decidi que era melhor levar a bicicleta.

No tempo do rural, cheguei novamente na casa da fazenda. Passei o terreiro, cumprimentei Delvair e expliquei o caso. Descubro que minha volta era necessária: havia esquecido o capacete em sua cozinha. Após novas explicações do caminho, Dona Vera conclui que é melhor me conduzir até a Barra.

Durante o percurso, ela entende que não seria fácil encontrar a saída daquele pasto, visto que o capim estava muito alto e havia cobrido toda a trilha do gado. Chegamos a Barra e, finalmente, fez sentido o que ela quis dizer com chamar um canoeiro.

A Barra do Rio de Janeiro era a foz deste – onde encontra o São Francisco. Não era uma desembocadura larga, e o rancho do Nem era imediatamente às margens da Barra. Assim, era possível se comunicar com quem estivesse do outro lado, sem ao menos ter de gritar alto.

Para meu azar, não havia ninguém com canoa que pudesse me atravessar naquele momento. Havia de aguardar. Dona Vera partiu e eu ali fiquei a espera de qualquer pescador.

Enquanto aguardava, dei falta do gravador de áudio que levava. Pensei que pudesse ter esquecido também em Dona Vera. Voltei novamente a casa da Cambaúba. Nada. O aparelho tinha se perdido nas minhas andanças pelo mato. Procurei incansável até decidir que era melhor me instalar e tentar encontrá-lo no dia seguinte. Eram quase quatro da tarde quando Adriano, um pescador da redondeza me atravessou para o o rancho do Nem. Desci o barranco, coloquei, com sua ajuda, a bicicleta na canoa e buscamos a outra margem.

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