Sertão é por os campos gerais a fora e a dentro,
eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia...
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador...


Sertão é o sozinho(...)Sertão: é dentro da gente.



segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Cora (Aninha) Coralina








Eu era uma pobre menina mal-amada.
Frustei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento.
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente irreversível.
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha.
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos:
Minha bisavó e minha tia Nhorita.
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe.
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida, me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar e levar queixas doloridas para a mãe que perdida no mundo de leitura e negócios não dava atenção.
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó.
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus malfeitos de criança e exortava minhas irmãs a me aceitarem.
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se aguçando para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades.
E fui marcada: menina inzoneira
Sem saber o siginificado da palavra, acostumada ao tratamento ridicularizante, essa palavra me doía.
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência com as cigarras, descia na casa das formigas, brincava de roda com elas, cantava "Senhora D. Sancha", trocava anelzinho.
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia.
Chamavam, mãe: vem ver Aninha...
Mãe vinha, ralhava forte.
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão.
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente.
Era nesse tempo, amarela de olhos empapuçados, lábios descorados.
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: "Cieiro".
Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas.
Não me deixavam participar de seus brinquedos.
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o braço no ombro e segredava: "Não brinca com Aninha não. Ela tem Cieiro e pega na gente."
Eu ia atrás, batida, enxotada.
Infância...Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância...
Infância...Hoje, será.

Cora Coralina. Em Menina Mal-Amada, Vintém de cobre - Meias Confissões de Aninha.

Ofertas de Aninha (aos moços)

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina. Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha





( Ana Lins dos Guimarães Brêtas (1889 - 1985), a Aninha doceira dos reinos de Goiás (Goiás Velho), sob o pseudônimo de Cora Coralina torna-se conhecida aos 90 anos depois de apresentada à comunidade literária por Carlos Drummond de Andrade. Contista e poeta brasileira que teve seu primeiro livro publicado aos 76 anos nunca se filiou a nenhuma escola de literatura, sendo sua obra original e marcada pela memória de sua terra.

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