Sertão é por os campos gerais a fora e a dentro,
eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia...
Lugar sertão se divulga: é onde os pastos
carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas,
sem topar com casa de morador...


Sertão é o sozinho(...)Sertão: é dentro da gente.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Guaicui

Igreja de 1635. Guaicui - MG


Meninos praticando bicicross. Guaicui - MG, 2011.

 Seo Edson, que consertou a caramanhola quebrada com pedaço de borracha e a deixou melhor do que antes. Guaicui - MG, 2011.

Praça Manuelzão. Guaicui - MG, 2011

sábado, 15 de dezembro de 2012

21/05 - Buritizeiro


Buritizeiro...Pirapora...Para mim, a fronteira que separava as Minas dos Gerais, as últimas cidades “grandes” ao norte do Estado. Não sabia o que encontraria adiante, no imaginário estavam velhas cidades esquecidas tingidas no ocre do barro agreste. A ideia construía-se sobre o mapa. Este era claro, informava que depois dessas cidades eram os vazios, os sertões: grandes territórios, poucas cidades e povoados; estradas que cabiam na conta dos dedos – todas a tomar distância do São Francisco e a conduzir para o litoral (Espírito Santo ou Bahia); ou no sentido oposto, para Brasília. Não entendia por que um rio tão importante na história da colonização do país seguia tão sozinho para o mar.

A viagem neste ponto tinha se tornado coisa séria. Há muito não fazia turismo pedalando: as grandes distâncias, os labirintos rurais com pouca presença humana e a clara falta de infraestrutura para atender viajantes – experenciada desde a saída de Curvelo – processavam em mim uma mudança – até aquele momento identificada simplesmente como o stress provocado por um “risco hipotético” permanente, mas que depois compreendi tratar-se de uma transformação mais profunda: estava endurecendo, aprendendo a controlar o medo. Transformava-me numa espécie de ser anônimo, sem rosto, um ser humano a-histórico, sem gênero, capaz de existir em qualquer lugar e tratar com qualquer pessoa. Não cabia mais insegurança, arrependimento, fraqueza ou esmorecimento; àquela altura, tudo era só a certeza do destino traçado e a vida-instante.

                                       
Cheguei em Buritizeiro no fim da tarde. Não sei se pelo que tinha ouvido em Três Marias de dois guardas da polícia florestal, surpreendi-me ao perceber que a cidade era menor do que imaginara. Os guardas pintaram um cenário aterrorizador de Buritizeiro, disseram que a cidade era muito perigosa, violenta, repleta de bandidos de toda Minas Gerais. E para além desta animadora informação, o fato de saber que havia uma ponte sobre o São Francisco conectando Buritizeiro à Pirapora – ou seja, as porções leste e oeste do Estado dividido pelo rio - faziam-me pensar que aquele deveria ser um lugar de intenso movimento; e que portanto os guardas poderiam ter razão quanto às observações.    


Buritizeiro, diferente do que esperava, parecia uma cidade provinciana e mal cuidada. Faltava calçamento em muitas ruas, outras estavam completamente esburacadas e cobertas por uma areia fina. O centro comercial não chamava atenção – acredito que pelo contato direto com Pirapora, suas necessidades comerciais acabam sendo supridas pela cidade vizinha – e as construções, casas, pequenos prédios pareciam esquecidos.    

Dirigi-me até o lugar de maior movimento – uma  rua central – e então perguntei a uma senhora onde poderia encontrar uma pousada para passar a noite. Ela indicou aquela que talvez fosse a melhor da cidade: a recém inaugurada Portal do Sertão. Com o número de telefone e o endereço nas mãos tratei de procurar o lugar. Atenta ao suposto banditismo da cidade, seguia pelas ruas procurando no rosto dos habitantes expressões suspeitas. Ninguém parecia, entretanto, mal-encarado ali; e a tomar como exemplo a senhora que abordei e outros que passavam, não poderia confirmar a imagem feita pelos guardas de Três Marias; não percebia sinais de tensão ou desconfiança nas pessoas – o que seria notável se ali imperasse de fato a insegurança.

                                                             ...

Encontro a pousada. O lugar é muito agradável, parece uma chácara: tem galinhas, cachorro e mangueiras no quintal; a suíte é ampla e confortável. – Para quem na noite anterior dormira sob um isolante térmico, em uma barraca com dois homens ressonando ao lado, pedalara 130km – sessenta  por estrada de terra – com pouca comida; ter chegado até ali e me hospedar  na Portal do Sertão correspondia ao paraíso alcançado (risos). Apesar das pernoites em Buritizeiro terem sido as mais caras de toda a viagem, não pagavam a hospitalidade e a generosidade dos donos da pousada, Rômulo e Edna. Além do conforto, a simpatia do casal, o cuidado comigo e as deliciosas refeições servidas (até mesmo fora da hora e do valor da diária) tornaram as duas noites que passei ali um presente.

                                    
Sabiam que estava cansada, então trataram de me instalar rapidamente. Porém, logo que deixei a bicicleta e tomei um banho, Edna me chamou para o jantar. Tinha preparado a mesa do grande salão da recepção: com arroz, feijão, linguiça frita, frango caipira ao molho pardo (galinha do quintal), salada de alface com tomate e suco freco de abacaxi. A visão não poderia ser melhor: comida caseira e farta – como gosto –, depois de um dia à base de mexericas e pão amanhecido.

                               
 Enquanto jantava, Rômulo me contava histórias. Neto de um conhecido fazendeiro da região, nascido e criado em Buritizeiro, acumulava experiência sobre aquelas terras. Trabalhava com ecoturismo organizando cavalgadas, canoagem, trekking, etc. Contou-me de seu cavalo, Dançarino, que sabia o caminho de casa, voltava sozinho e abria colchete (parte de cerca que funciona como porteira, onde um mourão solto prende-se a um outro por um aro de arame) – o cavaleiro nem precisava desmontar do animal. Preveniu-me que onça com fome é capaz de seguir a presa por dias até encontrar o momento certo para o ataque, mas que eu deveria mesmo era ficar atenta com cobra nas estradas, pois elas sim poderiam representar um verdadeiro perigo; tinha jararaca, jaracuçu, cascavel, coral, achatadeira,...

Falando sobre meu próximo destino, Paredão, disse-me que ficava à 94km da cidade, explicou o trajeto que faria, recomendou que procurasse Seo Sidraque ao chegar e acrescentou: “Você vai gostar de Paredão, da energia do lugar, o rio do sono...E saiba que lá tudo se resolve, é lugar de decisão: em Paredão nada fica em cima do muro.”       
         

domingo, 9 de dezembro de 2012

21/05 - BR365


Convencida de que só me restava encontrar a BR-365 para chegar a Buritizeiro, me despeço de Adriano, o “guarda”da fazenda,  e tomo a direção que indicou. Aproximadamente sete kilômetros mais por chão de terra, saio no asfalto. Barulho, excesso de caminhões, camionetes, acostamento precário: linha reta, pista simples e margens de uma falsa savana de cerrado – afinal, a faixa de mata nativa preservada ali só mascara as grandes florestas de eucalipto que emergem infinitas poucos metros adentro.

Era uma e vinte da tarde. Percorria a monotonia da passadeira preta desde meio-dia e meia. Não havia nenhuma construção na beira da estrada, temia não encontrar qualquer lugar onde pudesse conseguir comida. Poucos minutos depois, porém, avistei do outro lado da pista uma casa entre eucaliptos: supus fosse um posto de gasolina com restaurante. Não era, tratava-se do segundo posto da RIMA, outra empresa-fazenda de eucalipto. Fui recebida na casinha por dois vigias: Wilson e Edmundo, que, para meu alento, tinham ainda alguns pães que sobraram do café da manhã. Tal qual a fazenda anterior, a entrada desta era também gradeada e fechada com tela de metal. Os vigias me convidaram a entrar porque confiaram que eu não era uma espécie de assaltante ou investigadora, pois o acesso ali não era permitido a estranhos. Sentei no terraço da casinha – que era um cômodo com pia e banheiro, simplesmente – e esperei. Logo, retornaram os dois: traziam uma sacola plástica com três pães amanhecidos, com margarina, e um pedaço de doce-de-leite. Desculparam-se por não poderem oferecer uma refeição típica para o almoço: mas recebiam marmita e as porções eram, como se sabe, individuais; e ambos já haviam almoçado. Aproveitando o momento de pausa, comi ali mesmo os pães, enquanto conversava.

Confirmaram que quanto mais para o norte eu seguisse, mais areia encontraria nas estradas. Falei do trajeto que pensava em percorrer após pernoitar em Buritizeiro, e explicaram o caminho para Paredão. Entre outros assuntos, me listaram o nome de algumas das empresas que plantam eucalipto no noroeste de Minas Gerais – além  da RIMA: MINASLIGA, LIASA, SANTOS DIAS, MINAS BRÁS, GERDAU, PETCOVE, PLANTAR. Interaram que todas elas produzem madeira para as siderúrgicas, e acrescentaram: “ Ih...Você tá querendo encontrar cerrado? O cerrado acabou, agora é só eucalipto”.

Faltavam ainda 50km para chegar em Buritizeiro. – Depois de alimentada, tudo bem: seguiria em paz. Felizmente os últimos 40km, me disseram, seriam sobre um aslfato “novinho”, bastante plano e com algumas “banguelas” - para ajudar no final. 

Deixei os capatazes da RIMA e voltei para a estrada. No caminho, encontro os trabalhadores (mulheres e homens) da obra de recapeamento da BR. Acham graça na viagem e oferecem carona no caminhão que os levará de volta a cidade, agradeço mas declino da oferta; então eles se despedem admirados e riem da situação.

Cheguei em Buritizeiro cinco e meia da tarde. Nos últimos kilômetros já estava bastante cansada – foram 130km neste dia. Nada, contudo, que me impedisse de admirar a beleza dos chapadões do São Francisco no horizonte sendo banhados por uma chuva precipitada do céu que mais parecia pó de ouro derramando sobre a terra.           

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Sertão, esses seus vazios...


De desde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte.



Ainda não disse como cheguei ao sertão – decerto porque acredito que foi ele que veio até mim: não busquei.

Morte de mãe é anúncio de sertão na vida: o espaço sem rosto, sem identidade, sem família, passado ou futuro: o aqui-agora da errância.

A minha começou quase três anos antes dessa viagem, na cidade de Ribeirão Preto, na noite do dia primeiro de janeiro de 2009. Ali começou o sertão para mim: fora de casa, numa cidade que eu mal conhecia, com a qual não tinha nenhuma relação e onde, depois do ano virado, fiquei sem o único amor necessário. De súbito, o mundo tornou-se igualmente desconhecido: não havia mais lugar, qualquer parada era a mesma parada: a do coração, sem diferenças: vida ou morte, casa ou sertão.

Foi então que descobri Riobaldo... Ele parecia compreender o que eu sentia: falava de vazios, de solidões, de grandes lugares escondidos – somente do conhecimento de umas poucas “veredas, veredazinhas”. Falava de uma paisagem, enfim, que era dentro, mas que também era fora da gente, e por isso possível de ser tocada. O cerrado mineiro caracterizava as paisagens internas, da alma... Por quê?

Não sei por que, mas sei que precisava de um espelho; um ambiente, uma condição que materializasse meu sentimento do mundo. Este sentimento que Riobaldo informava fazer parte dos Gerais: o sertão. Sim, minha vida havia mudado para uma segunda parte com a morte de minha mãe tal como aconteceu com o personagem do livro, e era agora o ato da errância. Não era uma busca por liberdade, era uma busca por reconhecimento, o reconhecimento de um estado de alma. A liberdade é coisa delicada: só aparece sob referências, sem elas o que se experimenta é destino, sorte nos caminhos. Eu vagava pelos Gerais assim: na sorte. Poderia ter acontecido qualquer coisa, felizmente só cruzei coisas boas nas estradas - mas poderia ter sido diferente.

(Engraçado que sonhei com minha mãe no início da viagem e ela estava muito feliz por mim).  

Riobaldo erra buscando, casa-se com Otacília para acertar o equilíbrio que só um amor simples é capaz de oferecer, no entanto Diadorim continua como sua neblina: o impossível de quem vai só se for para não voltar, de quem não pode ter outro destino senão morrer (Diadorim reifica o próprio sertão na pessoa). Na velhice ele já está sediado num canto qualquer dos Gerais, um canto caloroso, sobretudo; porém não venceu o sertão, que continua em Diadorim e na lembrança da mãe que ainda lhe exporta: esse sertão que ninguém não conhece, nem mesmo ele próprio que sente.

Também errei, mas não foi querendo parada, tampouco “dando batalha” mirando vingança por razão tal qual Diadorim. Saí mesmo porque neste segundo ato da peça sociedade não tinha, em mim só restava natureza.   



quarta-feira, 5 de setembro de 2012

21/05 - Labirintos de Buritizeiro


Pedalar. Primeiro, adentro o arraialzinho da Sambaíba, uma “currutela”, como chamam no sertão um ajuntamento de meia dúzia de casas no espaço rural. Ninguém ali. Continuei na estrada até chegar numa área de pastagem. Era o início e eu já não tinha certeza de onde estava. O sol começava a se estabelecer, a cerração a se dissipar, mas a terra ainda permanecia úmida. No rumo, distante cerca de quinhentos metros, avisto um homem na estrada. Passei por ele e perguntei. Apesar da explicação, o fato de não ter noção da distância em que deveria sair de uma estrada para entrar em outra tornava o percurso dependente também de golpes de sorte. (Nesses casos, eu costumava permanecer na “estrada mais batida”, no caminho que parecia mais óbvio). Passei então sobre um rio de nome Formoso (vi ali um carcará bicando um pedaço de pano velho) e me senti confiante: estava no caminho certo, tinha descido e atravessado o rio conforme me disseram.  Além do mais, o sol do meu lado direito confirmava o sentido norte.  



Mais alguns kilômetros e avisto a fazenda Carneiro. Decido passar a porteira para perguntar mais uma vez.(Para entrar em fazendas, sempre deixava o canivete em lugar de fácil alcance com a lâmina aberta, para me defender caso algum cachorro resolvesse atacar).

Sou recebida primeiro por três cachorros que, com os latidos, logo atraíram à porta quem estava em casa: uma mulher, uma garota adolescente e uma menininha. (Ninguém nunca entendia bem o que era aquilo: uma mulher chegando de bicicleta sozinha...). A mais velha confirmou que estava no caminho certo para Buritizeiro. Segui, então, como diziam: animada! Veio uma serra um pouco íngreme, mas não precisei empurrar a bike; continuava, observando os arredores por controle: pensava nas onças. Foi quando, subitamente, o cerrado acabou e me vi dentro de um enorme “eucalipal”. Ali constatei que tinha tomado o caminho errado e que por isso a viagem ganharia cerca de 50km a mais. O rapaz que tinha encontrado na estrada assim que saí da Sambaíba havia me dito que existiam dois caminhos, o de cima, mais usual, levava para a fazenda de eucalipto, Nazaré; o outro “margeava” o rio. Como pelo rio eu não deveria ver eucalipto, certamente tinha tomado o caminho da Nazaré.

A estrada era pura areia, bancos de 40cm ou mais. Por sorte, a chuva na noite anterior compactara o solo, o que possibilitou pedalar, senão perderia longo tempo ali. As árvores estavam altas e não era possível enxergar onde estava. Cheguei em uma encruzilhada na plantação e não sabia para onde seguir. Qualquer erro poderia significar desgaste, fome, falta de água e uma noite no mato. Se estamos no rumo certo, nossos esforços podem ser medidos pelo tempo de viagem aproximado; errar neste caso significa perder o pouco de controle que temos da situação sem qualquer garantia de encontrar alguém no caminho para ajudar. Respirava fundo e olhava para as opções: esquerda ou direita no labirinto de eucaliptos? Direita: porque havia marcas de pneu no solo e o sol continuaria refletindo no meu lado direito: rompia para o norte.


Foram alguns poucos kilômetros com os olhos arregalados, a respiração lenta e profunda, a cabeça “segurando” o espaço; até que um carro surgiu derrapando ao longe (só nessas ocasiões um motor é alívio). Sim, o caminho era aquele mesmo: sairia na BR365 cerca de 20km à frente.

O “eucalipal” diminuia de altura e a vista podia então ir mais longe, o que também gerava alívio. Outro carro se aproxima e dessa vez ganho do motorista saborosas mexericas. A paisagem vai mudando, e dos eucaliptos passo para uma área de cerrado caído, destruído. 


Depois, num baixio, vejo a primeira vereda da viagem. É a "ficção" real: os buritis, o resfriado. O medo se encerra, invadido pelo sonho. Estou emocionada.



Pela configuração do espaço é possível perceber se já estamos perto de estrada de rodagem ou não. É simples: há mais cercas, mais placas, mais movimento humano nas proximidades de rodovia. Passei da vereda e cheguei num cruzamento onde, do lado direito havia uma fazenda. Vou até lá para mais uma vez saber do caminho.

Essas fazendas de eucalipto em nada se assemelham àquelas fazendas de nossa memória do Brasil colônia ou da república velha. Não são áreas de morada, não tem casarões coloniais, cavalos, pomar, horta, quintal, terreiro...São empresas, algumas com escritório e grandes barracões onde se guarda o maquinário. Não possuem camponeses mas seguranças armados, vigias, câmeras. Não é espaço de vida. É estranho porque descaracteriza o rural, mas também não se configura como um espaço urbano. É uma fronteira sem semblante, sem humanidade.

Chego nessa fazenda e não vejo ninguém, no entanto sou vista; Adriano, um segurança vestido como policial, vem falar comigo. Percebo que está armado. Ele é simpático até, explica que estou há aproximadamente  7km do asfalto, mas que para Buritizeiro terei ainda que percorrer algo em torno de 70km.

Não vejo problema contanto que tenha algum lugar onde possa fazer uma refeição neste intervalo. “Não há”, me disse. Era meio-dia, e me restavam apenas duas mexericas e um quarto de um pacote de bolacha salgada. Adriano disse que me arrumaria algo se tivesse, mas que ele levava marmita e já tinha almoçado.
Com comida ou sem, o jeito era continuar. Tinha esperança, no entanto, de conseguir um pouco mais de comida em qualquer lugar da estrada.    
   


21/05 - Saída da Barra


Seis da manhã. O dia está nublado. Tenho minhas tralhas já arrumadas, espero Nem levantar para seguir de canoa  até o porto da Sambaíba onde tomarei a estrada para Buritizeiro. Bebo um café pingado e novamente como bolachas Maria.  João Lúcio e Luís dizem-se tristes com minha partida, falam que a Barra vai perder a graça: “A gente devia é ter ido para as bandas do Rio Pardo, para conhecer mulher como você! Meu coração vai contigo...”; falam  João Lúcio e Luís. – São muito teatrais.

No momento de deixar a Barra, uma foto com todos de lembrança.  Nem desce a barranca para embarcar a bicicleta, Luís lamenta: “Liquinha me dá o Rivotril, faz favor!”. Um último abraço em cada um, depois o pulo para dentro da canoa. João Lúcio se apressa, tira do bolso uma nota de cinquenta reais e pede para eu pegar, “é para ajudar na viagem”.


Partimos. O São Francisco está enevoado pela cerração da água na superfície. Sinto-me naqueles cenários de selva onde o vapor, como gelo seco em palco, materializa o mistério tornando o presente suspeito. Vamos quietos. Nem desce comigo aproximadamente dois kilômetros de rio. Não sei em que tempo estou: a manhã é jurássica. De repente uma pequena clareira surge na margem esquerda, Nem diminui a velocidade e encosta. Chegamos nas terras da Sambaíba. Há um homem ali, com traços asiáticos; parecia que nos esperava. 

Este homem me dá instruções de como chegar em Buritizeiro margeando o rio, mas previne que não será fácil: “É complicado até para quem mora aqui. Você vai perguntando, se ver alguém na estrada; para não se perder”.  

As instruções de direção no meio rural são um tanto difíceis para quem é da cidade pois, visto que não se trata de um espaço racionalizado tal qual o meio urbano, as referências, em geral, correspondem a marcos de vegetação, do curso dos rios, de casas de sitiantes e outras pequenas interferências humanas como: mata-burros, tipos de cerca e agricultura. É raro ouvir esquerda/direita ou menção a placas de sinalização. A coisa é mais ou menos assim:  vai para o rumo de cá, depois vira para lá, passa um número X de mata-burros, vai ter um rio, uma pontezinha, uma plantação Y, um “gaio”, um baixadão, etc. ... Por aí vai. Fica a impressão de que o senso de orientação nesses ambientes é exclusivamente prático – como  comida feita “a olho”, para a qual não existe a medida exata dos ingredientes, mas aproximações que dependem sobretudo do hábito de quem prepara –  entretanto, mesmo que o movimento do corpo pelo espaço seja o condicionante do conhecimento sobre o caminho (um conhecimento cinestésico), existe uma precisão a partir de certos elementos significativos. O problema é que nós, habitantes das cidades, não estamos acostumados a lógica desses espaços, o que nos leva a pensar que as instruções dadas não são suficientes para garantir um destino correto. Lembro-me de sempre ter dúvidas quando chegava num mata-burro ou porteira de que se tratava exatamente do que tinham indicado. No fim das contas,  o que sentia era a falta de símbolos (palavras e números) na paisagem; seguia um mapa imaginário feito de plantas, madeira, água e ferro que deveriam combinar com aquilo que via pelo caminho.             

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

20/05 - Último dia na Barra do de-Janeiro: lembranças e notas de diário.

De volta a fazenda Cambaúba, sento-me debaixo da mangueira com Delvair, filho de D. Vera, que está cosendo rede de pesca. Ele também vende peixes em Três Marias. O garotinho, neto de D. Vera, está imitando a vó e puxa água da soleira da porta da cozinha com um rodo duas vezes o seu tamanho (não tem nem dois anos completos). Delvair conta que às vezes vai de bicicleta para a cidade (havia peças como catracas, garfo, pedaços de corrente espalhados de forma a compor uma instalação artística no quintal). Mas ele tem uma moto, que lhe serve melhor para o trânsito regular de 50km da fazenda até o centro urbano.
...
Eram duas horas da tarde e estava esperando na barranca alguém para me levar de volta ao Nem. Tinha pela terceira vez vasculhado o pasto da Cambaúba em busca do gravador e, finalmente, desistido. A partir daquele momento os registros deveriam ser sempre escritos.
João Lúcio foi quem veio me apanhar: remando.
Almocei macarrão com carne aquela tarde e passei boa parte do resto do dia assistindo os três homens (Maurício, João Lúcio e Luís) pescarem. – Estava com Grande Sertão: Veredas nas mãos. Foi engraçado o momento em que, com receio de chuva, Luís pegou um graveto e começou a riscar um grande sol no chão de areia; disse que o desenho espantaria a chuva iminente. Ele não parecia brincar, fazia aquilo seriamente, certo de que funcionaria. Achei engraçado pois me lembrei que eu costumava acreditar no desenho do sol quando era criança. De fato não veio chuva, só alguns poucos pingos, insuficientes para atrapalhar a pescaria. Gostava dos três, eram brincalhões e bondosos.
À noite, D. Liquinha me convida para jantar com ela e Nem. À mesa ouço histórias variadas, como a de Dona Didi, senhora – velhinha já – que pagava motorista de Belo Horizonte para a Barra, onde costumava passar até uma semana. Segundo eles, Didi gostava de uma cachaça, chegando a tomar um litro por dia; fumava e declamava poesias. Tinha dinheiro, mas preferia a simplicidade daquele lugar – que na época não tinha nem luz elétrica – a roteiros turísticos populares. 
Lá também fico sabendo do causo da barba de Manuelzão: o velho havia feito promessa de que só cortaria depois que matasse o assassino de um de seus filhos. – Morreu barbudo.
João Lúcio, irrefreável em seu senso de humor, também conta (estórias): a do dia em que um enorme surubim o levou para passear no São Francisco e a do amigo peidorreiro.
Surubim: o bicho era tão grande e forte que enfrentou a fisgada do anzol arrastando-lhe, com a canoa, pelo rio quase até Três Marias.
Do peidorreiro: uma noite, o amigo esqueceu o lampião aceso dentro da barraca, então o fogo, alimentado pelo gás de seus peidos, aqueceu o ar interno a ponto da barraca suspender do chão e começar a flutuar. Como estava ventando muito, a barraca subiu, e feito balão vôou até passar da cerca. De manhã, o rapaz não entendia o que tinha acontecido, porque amanhacera do outro lado do rancho. Achou que os amigos tinham lhe pregado uma peça enquanto dormia.   
Aproveitando o clima de piada e o recorrente assunto de onça, Nem diz que lobo guará só ataca mulher – e se estiver menstruada é pior por causa do cheiro. Contou que uma vez um guará perseguia uma mulher, e ela, na fuga, trepou num arbustozinho. O guará foi atrás e, enquanto tentava puxá-la para baixo, ela gritava por socorro. O genro foi quem viu a cena, mas achou graça e, em vez de ajudar, começou a gritar de volta, para o guará: “pega a véia! Pega a véia!”
...
Logo mais, outros homens chegaram. Por minha causa, o assunto em geral recaía em lembranças de aventuras pessoais – ou alheias – e tentativas superficiais de explicar a geografia da região. 
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O rancho do Nem é uma casa/bar. Vizinhos e pescadores da temporada vêm a qualquer hora para tomar café, cerveja e cachaça. A maioria pesca de noite, chegam de voadora com lanterna. O fluxo masculino é imperativo.
...
Eles ficam falando que há onças por aqui,...Sei lá, fico com medo: disseram que elas atacam pelas costas...
Sinto,na verdade, que já estou um pouco cansada da viagem. O ambiente rural daqui é duro: longas distâncias, poucos povoados... A solidão na estrada é grande, o cansaço e o medo começam a ter efeitos. Agora devo começar o trabalho para manter o equilíbrio emocional. Devo redobrar a atenção, tenho muito que viajar ainda. Percebo agora o quanto sou urbanizada, sinto-me bem em lugares com infraestrutura, onde possa encontrar coisas de que preciso. Aqui não tem nada: a água que se usa é do rio, encanada mas direto do rio. Vou sair amanhã cedo e preciso me preparar: não tenho comida suficiente para levar no percurso até Buritizeiro...