De volta a fazenda Cambaúba, sento-me debaixo da mangueira com Delvair, filho de D. Vera, que está cosendo rede de pesca. Ele também vende peixes em Três Marias. O garotinho, neto de D. Vera, está imitando a vó e puxa água da soleira da porta da cozinha com um rodo duas vezes o seu tamanho (não tem nem dois anos completos). Delvair conta que às vezes vai de bicicleta para a cidade (havia peças como catracas, garfo, pedaços de corrente espalhados de forma a compor uma instalação artística no quintal). Mas ele tem uma moto, que lhe serve melhor para o trânsito regular de 50km da fazenda até o centro urbano.
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Eram duas horas da tarde e estava esperando na barranca alguém para me levar de volta ao Nem. Tinha pela terceira vez vasculhado o pasto da Cambaúba em busca do gravador e, finalmente, desistido. A partir daquele momento os registros deveriam ser sempre escritos.
João Lúcio foi quem veio me apanhar: remando.
Almocei macarrão com carne aquela tarde e passei boa parte do resto do dia assistindo os três homens (Maurício, João Lúcio e Luís) pescarem. – Estava com Grande Sertão: Veredas nas mãos. Foi engraçado o momento em que, com receio de chuva, Luís pegou um graveto e começou a riscar um grande sol no chão de areia; disse que o desenho espantaria a chuva iminente. Ele não parecia brincar, fazia aquilo seriamente, certo de que funcionaria. Achei engraçado pois me lembrei que eu costumava acreditar no desenho do sol quando era criança. De fato não veio chuva, só alguns poucos pingos, insuficientes para atrapalhar a pescaria. Gostava dos três, eram brincalhões e bondosos.
À noite, D. Liquinha me convida para jantar com ela e Nem. À mesa ouço histórias variadas, como a de Dona Didi, senhora – velhinha já – que pagava motorista de Belo Horizonte para a Barra, onde costumava passar até uma semana. Segundo eles, Didi gostava de uma cachaça, chegando a tomar um litro por dia; fumava e declamava poesias. Tinha dinheiro, mas preferia a simplicidade daquele lugar – que na época não tinha nem luz elétrica – a roteiros turísticos populares.
Lá também fico sabendo do causo da barba de Manuelzão: o velho havia feito promessa de que só cortaria depois que matasse o assassino de um de seus filhos. – Morreu barbudo.
João Lúcio, irrefreável em seu senso de humor, também conta (estórias): a do dia em que um enorme surubim o levou para passear no São Francisco e a do amigo peidorreiro.
Surubim: o bicho era tão grande e forte que enfrentou a fisgada do anzol arrastando-lhe, com a canoa, pelo rio quase até Três Marias.
Do peidorreiro: uma noite, o amigo esqueceu o lampião aceso dentro da barraca, então o fogo, alimentado pelo gás de seus peidos, aqueceu o ar interno a ponto da barraca suspender do chão e começar a flutuar. Como estava ventando muito, a barraca subiu, e feito balão vôou até passar da cerca. De manhã, o rapaz não entendia o que tinha acontecido, porque amanhacera do outro lado do rancho. Achou que os amigos tinham lhe pregado uma peça enquanto dormia.
Aproveitando o clima de piada e o recorrente assunto de onça, Nem diz que lobo guará só ataca mulher – e se estiver menstruada é pior por causa do cheiro. Contou que uma vez um guará perseguia uma mulher, e ela, na fuga, trepou num arbustozinho. O guará foi atrás e, enquanto tentava puxá-la para baixo, ela gritava por socorro. O genro foi quem viu a cena, mas achou graça e, em vez de ajudar, começou a gritar de volta, para o guará: “pega a véia! Pega a véia!”
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Logo mais, outros homens chegaram. Por minha causa, o assunto em geral recaía em lembranças de aventuras pessoais – ou alheias – e tentativas superficiais de explicar a geografia da região.
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O rancho do Nem é uma casa/bar. Vizinhos e pescadores da temporada vêm a qualquer hora para tomar café, cerveja e cachaça. A maioria pesca de noite, chegam de voadora com lanterna. O fluxo masculino é imperativo.
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Eles ficam falando que há onças por aqui,...Sei lá, fico com medo: disseram que elas atacam pelas costas...
Sinto,na verdade, que já estou um pouco cansada da viagem. O ambiente rural daqui é duro: longas distâncias, poucos povoados... A solidão na estrada é grande, o cansaço e o medo começam a ter efeitos. Agora devo começar o trabalho para manter o equilíbrio emocional. Devo redobrar a atenção, tenho muito que viajar ainda. Percebo agora o quanto sou urbanizada, sinto-me bem em lugares com infraestrutura, onde possa encontrar coisas de que preciso. Aqui não tem nada: a água que se usa é do rio, encanada mas direto do rio. Vou sair amanhã cedo e preciso me preparar: não tenho comida suficiente para levar no percurso até Buritizeiro...