Buritizeiro...Pirapora...Para
mim, a fronteira que separava as Minas dos Gerais, as últimas cidades “grandes”
ao norte do Estado. Não sabia o que encontraria adiante, no imaginário estavam
velhas cidades esquecidas tingidas no ocre do barro agreste. A ideia construía-se
sobre o mapa. Este era claro, informava que depois dessas cidades eram os
vazios, os sertões: grandes territórios, poucas cidades e povoados; estradas
que cabiam na conta dos dedos – todas a tomar distância do São Francisco e a
conduzir para o litoral (Espírito Santo ou Bahia); ou no sentido oposto, para
Brasília. Não entendia por que um rio tão importante na história da colonização
do país seguia tão sozinho para o mar.
A viagem
neste ponto tinha se tornado coisa séria. Há muito não fazia turismo pedalando:
as grandes distâncias, os labirintos rurais com pouca presença humana e a clara
falta de infraestrutura para atender viajantes – experenciada desde a saída de
Curvelo – processavam em mim uma mudança – até aquele momento identificada
simplesmente como o stress provocado por um “risco hipotético” permanente, mas
que depois compreendi tratar-se de uma transformação mais profunda: estava
endurecendo, aprendendo a controlar o medo. Transformava-me numa
espécie de ser anônimo, sem rosto, um ser humano a-histórico, sem gênero, capaz
de existir em qualquer lugar e tratar com qualquer pessoa. Não cabia mais insegurança, arrependimento, fraqueza ou
esmorecimento; àquela altura, tudo era só a certeza do destino traçado e a
vida-instante.
Cheguei em Buritizeiro no fim da tarde. Não
sei se pelo que tinha ouvido em Três Marias de dois guardas da polícia
florestal, surpreendi-me ao perceber que a cidade era menor do que imaginara.
Os guardas pintaram um cenário aterrorizador de Buritizeiro, disseram que a
cidade era muito perigosa, violenta, repleta de bandidos de toda Minas Gerais.
E para além desta animadora informação, o fato de saber que havia uma ponte
sobre o São Francisco conectando Buritizeiro à Pirapora – ou seja, as porções
leste e oeste do Estado dividido pelo rio - faziam-me pensar que aquele deveria
ser um lugar de intenso movimento; e que portanto os guardas poderiam ter razão
quanto às observações.
Buritizeiro,
diferente do que esperava, parecia uma cidade provinciana e mal cuidada.
Faltava calçamento em muitas ruas, outras estavam completamente esburacadas e
cobertas por uma areia fina. O centro comercial não chamava atenção – acredito que pelo contato direto com Pirapora, suas necessidades comerciais acabam sendo supridas pela cidade vizinha – e as construções, casas,
pequenos prédios pareciam esquecidos.
Dirigi-me
até o lugar de maior movimento – uma rua
central – e então perguntei a uma senhora onde poderia encontrar uma pousada
para passar a noite. Ela indicou aquela que talvez fosse a melhor da cidade: a
recém inaugurada Portal do Sertão. Com o número de telefone e o endereço nas
mãos tratei de procurar o lugar. Atenta ao suposto banditismo da
cidade, seguia pelas ruas procurando no rosto dos habitantes expressões suspeitas. Ninguém
parecia, entretanto, mal-encarado ali; e a tomar como exemplo a senhora que
abordei e outros que passavam, não poderia confirmar a imagem feita pelos guardas de Três Marias; não percebia sinais de tensão ou desconfiança
nas pessoas – o que seria notável se ali imperasse de fato a insegurança.
...
Encontro a
pousada. O lugar é muito agradável, parece uma chácara: tem galinhas, cachorro
e mangueiras no quintal; a suíte é ampla e confortável. – Para quem na noite
anterior dormira sob um isolante térmico, em uma barraca com dois homens
ressonando ao lado, pedalara 130km – sessenta
por estrada de terra – com pouca comida; ter chegado até ali e me
hospedar na Portal do Sertão correspondia
ao paraíso alcançado (risos). Apesar das pernoites em Buritizeiro terem sido as
mais caras de toda a viagem, não pagavam a hospitalidade e a generosidade dos
donos da pousada, Rômulo e Edna. Além do conforto, a simpatia do casal, o
cuidado comigo e as deliciosas refeições servidas (até mesmo fora da hora e do
valor da diária) tornaram as duas noites que passei ali um presente.
Sabiam que
estava cansada, então trataram de me instalar rapidamente. Porém, logo que deixei a bicicleta e tomei um banho, Edna
me chamou para o jantar. Tinha preparado a mesa do grande salão da recepção: com arroz, feijão, linguiça frita, frango caipira ao molho pardo (galinha do
quintal), salada de alface com tomate e suco freco de abacaxi. A visão não poderia ser
melhor: comida caseira e farta – como gosto –, depois de um dia à base de
mexericas e pão amanhecido.
Enquanto
jantava, Rômulo me contava histórias. Neto de um conhecido fazendeiro da
região, nascido e criado em Buritizeiro, acumulava experiência sobre aquelas terras. Trabalhava com ecoturismo organizando cavalgadas, canoagem, trekking, etc.
Contou-me de seu cavalo, Dançarino, que sabia o caminho de casa, voltava sozinho
e abria colchete (parte de cerca que funciona como porteira, onde um mourão
solto prende-se a um outro por um aro de arame) – o cavaleiro nem precisava
desmontar do animal. Preveniu-me que onça com fome é capaz de seguir a presa
por dias até encontrar o momento certo para o ataque, mas que eu deveria mesmo
era ficar atenta com cobra nas estradas, pois elas sim poderiam representar um
verdadeiro perigo; tinha jararaca, jaracuçu, cascavel, coral, achatadeira,...
Falando
sobre meu próximo destino, Paredão, disse-me que ficava à 94km da cidade,
explicou o trajeto que faria, recomendou que procurasse Seo Sidraque ao chegar
e acrescentou: “Você vai gostar de Paredão, da energia do lugar, o rio do
sono...E saiba que lá tudo se resolve, é lugar de decisão: em Paredão nada fica
em cima do muro.”
Alegria ler esse seu relato Ana. Consegui visualizar sua chegada: montada, orgulhosa, exausta e realizada. Buritizeiro pra mim foi lugar de passagem. Cheguei lá primeiro vindo de Várzea da Palma, pelo outro lado do rio, passando por Barra do Guaicuí e Pirapora. Atravessei a ponte, entrei no São Francisco e voltei pra seguir seu curso pela margem direita. Retornei a Buritizeiro no fim da viagem, depois de fazer o trecho que você vai fazer em seguida, ao inverso. Os caminhos do sertão se cruzam é no espaço e no tempo também!
ResponderExcluirAgora a gente se encontra de novo no Guaicuí, e depois no Paredão.
ResponderExcluirB. do de Janeiro para Buritizeiro foi o trecho mais longo pedalado na viagem, e apesar do cansaço foi ainda mais tranquilo que o trecho para Paredão. Este você fez também, sabe como é.
MUDA PRA LA ENTÃO BABACA AI VOCÊ VAI VER COMA LA E UM LUGAR ''TRANQUILO''
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